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23.2.06

 
Aérea: Kate Bush encontra Oscar Niemeyer

Kiki Mazzucchelli

São Paulo, fevereiro de 2006. O lugar e a data desta exposição são dados fundamentais aqui, pois eu suspeito que os trabalhos mostrados por Edilaine Cunha na individual “Aérea”, na Galeria Vermelho, não poderiam ter resultado de outro lugar ou tempo. Com seus movimentos contraditórios e sua bagagem eclética, o conjunto desses trabalhos revela uma obra que é produto de uma certa vivência urbana, particular da cidade de São Paulo. É nesse contexto que a obra nasce, apesar de não se restringir a ele. A revista de arte canadense Parachute, por exemplo, dedicou em outubro de 2004 uma edição à cidade de São Paulo, organizada pela psicanalista e crítica de arte Suely Rolnik. Segundo a editora da publicação, Chantal Pontbriand, a escolha do tema justifica-se, já que “São Paulo, mais do que qualquer outra cidade brasileira, possui as características de um estado de globalização ao extremo. As grandes lacunas entre riqueza e pobreza, entre culturas diversas e muitas vezes isoladas, marcam o ritmo do cotidiano e a maneira com que seus cidadãos vivem. À urbanização caótica, pode-se somar o borbardeamento da mídia. São Paulo é também uma cidade em rede, uma cidade virtual que existe em meio a concretude das avenidas, ruas, monumentos, arranha-céus, favelas, vizinhanças étnicas, onde a violência e o cotidiano se misturam” . A cidade de São Paulo, pode ser considerada, portanto, como um estudo de caso das consequências da era da globalização.

Em relação ao espaço urbano, a característica mais gritante desse estado de globalização ao extremo é a crescente diminuição do espaço público. E a questão do espaço, tanto público quanto privado, é uma das preocupações do trabalho de Cunha desde o início. Em sua obra não se trata, no entanto, de produzir “trabalhos de arte pública” (public art), aqueles instalados especificamente em áreas de uso público. Ainda assim, sua obra trata muitas vezes da vida no espaço urbano. Mas a escala dos trabalhos sugere uma perspectiva pessoal, íntima, que diz respeito à relação do indivíduo com o ambiente urbano. Seu “Guichê” (2003), por exemplo, é uma réplica desse mobiliário em tamanho natural onde o orifício que determina sua função é obstruído por uma chapa de vidro. Mantêm-se na obra a relação de escala que teríamos entre nossos corpos e um guichê instalado em qualquer agência bancária, repartição pública ou bilheteria. Em outros trabalhos, o espaço é abordado por uma perspectiva menos sensorial e mais racional. O uso de códigos do desenho arquitetônico é recorrente mas, desafia o próprio sistema de representação e suprime a premissa básica da ordem e da razão. A arquitetura, ou ainda, o design – em seu sentido mais amplo – é um dos temas que transparece nesta mostra.

Há, por outro lado, a questão do bombardeamento da mídia citada por Pontbriand. E não há como falar sobre mídia hoje sem pensar também nas mídias digitais. Estas estão incorporadas não apenas no processo de produção de Cunha, como também na constituição de seu produto final. Mais uma vez, a forma com que Cunha lida com a questão da mídia digital não constitui o motor de seu trabalho, ou seja, assim como os trabalhos que lidam com o espaço urbano não são trabalhos de public art, os trabalhos que lidam com as mídias digitais estão longe de poderem ser classificados de media art. Como observou o visionário Waldemar Cordeiro no texto produzido para sua exposição de 'computer plotter-art', em 1969, o uso do computador “em traduções de formas tradicionais pode ser discutível. É como usar todos os recursos da eletrônica moderna para executar uma canzonetta napolitana, que será sempre melhor se tocada com os dedos no violão. O uso do computador adquire particular importância para as tendências que pesquisam na arte métodos heurísticos”.

Assim, sua série de “Popstars”, por exemplo, não diz respeito a uma discussão do meio digital. O que ela invoca é mais uma série de dados que fazem parte da vida em um grande centro urbano como São Paulo. Embora alguns defendam que as mídias digitais fazem parte apenas da vida das pessoas de classe média no Brasil devido a questão do acesso restrito. Eu diria que, apesar dessa restrição ser evidente, o acesso constitui apenas um dos muitos elementos de uma economia mais vasta que acaba por afetar também, ainda que indiretamente, a vida da população mais pobre. Este é provavelmente um argumento muito extenso para ser desenvolvido neste texto. O importante aqui é tentar enxergar o tema da mídia digital no trabalho de Cunha como um dado a mais dentro de uma obra que existe no contexto de um grande centro urbano com as características que lhe são peculiares, e que é informada por este contexto.


Anos sem Utopias

“As utopias são lugares que não possuem um lugar real. Elas são lugares que tem uma relação geral de analogia direta ou invertida com o espaço real da sociedade. Elas apresentam a própria sociedade de forma aperfeiçoada, ou a sociedade de ponta-cabeça mas, em todo caso, essas utopias são fundamentalmente espaços irreais”.

Michel Foucault, em Espaços Outros

Os anos utópicos por excelência talvez tenham sido os anos 60. O Brasil vive hoje um momento complicado, de derrocada dos sentimentos de esperança inspirados pela eleição do presidente Lula que se seguiu a uma série de acusações de corrupção e da manutenção da política econômica do governo FHC. Em grande parte do mundo, efeito similar for provocado pela reeleição de George W. Bush. Assim a utopia, conceito que surgiu da ilha imaginada por Sir Thomas Morus em 1516, parece não estar vivendo seus melhores momentos.

Mas a idéia de utopia voltou a ser um assunto popular dentro do campo das artes visuais por volta de 2003, quando o famoso projeto “Utopia Station” , com curadoria de Molly Nesbit, Hans-Ulrich Obrist e Rirkrit Tiravanija foi mostrado na Bienal de Veneza e, desde então os debates acerca do tema, ao menos nesse campo de estudos, vem gradativamente se proliferando. No texto de apresentação do projeto, os curadores descrevem como o conceito de utopia perdeu sua força, e relatam também o encontro com Jacques Rancière, em que o filósofo comenta sobre as dificuldades de se falar em utopia hoje, acrescentando que aquilo que realmente lhe interessa é a “dissensão, a maneira com que as rupturas são concretamente criadas: as rupturas no discurso, na percepção, na sensibilidade” .

Muitos dos trabalhos de Edilaine Cunha possuem uma certa afinidade com essa descrença de Rancière em projetos utópicos. O diálogo estabelecido por eles toca, em muitos momentos, na questão da arquitetura, talvez o campo mais simbólico de uma utopia desenvolmentista que marcou o país nas décadas de 50 e 60. Yve-Alain Bois menciona o “dicionário crítico” de Bataille publicado na revista Documents, cujo primeiro verbete é justamente “arquitetura”. Para Bataille, a arquitetura era um outro nome para o próprio sistema, o ideal humano, o superego. Mas “o que ele aborda não é tanto a imagem do homem dentro da arquitetura: seja o homem de autoridade (bispos, magistrados, almirantes) ou os homens que servem às autoridades, a arquitetura funciona para o homem como uma projeção imaginária: ele faz o melhor para se tornar uma “composição arquitetônica”” . Assim, para Bataille, uma das grandes realizações dos pintores modernos foi a resistência a tal petrificação por meio do ataque à anatomia humana para escapar da camisa de força arquitetônica. Edilaine Cunha, por sua vez, apropria-se da estética moderna ou de seus sistemas de representação, revelando precisamente os espaços reais da sociedade, elementos de ruptura dentro da utopia, do ideal.

Com os “Separadores”, objetos não-relacionais, não se trata apenas de representar mas de vivenciar um espaço real da sociedade que diz respeito ao crescente isolamento do indivíduo nos centros urbanos. Especialmente em São Paulo, os muros, as grades, as cercas elétricas, os carros blindados são o recurso dos que tentam se proteger contra os homo sacer de Agamben. Contudo, a experiência proporcionada por estes trabalhos é uma experiência íntima, entre dois indivíduos. Desse modo, poder-se-ia dizer que os “Separadores” representam uma espécie de transição para os trabalhos mais recentes, que lembram a pergunta de Espinoza: o que um corpo é capaz de fazer?


Para Quebrar o Silêncio

Dito isso, um olhar sobre a mostra “Aérea” como um todo, sugere um novo caminho se formando na obra de Edilaine Cunha. “Preenchendo Vazios” é o título do trabalho que ocupa a sala principal da galeria. São bolsas industriais infláveis, de plástico transparente e usadas para o transporte de mercadorias em larga escala, que vão se acumulando no espaço da galeria durante o perído da exposição, formando uma composição orgânica e não planejada. Segundo a própria artista, mesmo a relação entre os visitantes e o trabalho não é algo planejado. Pode ser que decidam manipular as bolsas, levar uma para casa, desviar-se delas, contemplá-las como se faz com uma escultura tradicional. Em todo caso, não haverá nenhum tipo de sinalização que prescreva que tipo de comportamento devem adotar naquele espaço.

Outros trabalhos desta exposição também existem na sua relação com o espectador. É o caso de “Bonito por Dentro”, uma bebida formulada pela artista e que será servida na abertura da exposição. O coquetel branco é uma promessa bem-humorada de uma possibilidade acessível a todos que se dispuserem a experimentá-lo. O mesmo acontece em “Para Quebrar o Silêncio”, uma série de sacolas plásticas com ilustrações didáticas para aqueles que decidirem levar a cabo a sugestão do título. Essas são pequenas subversões da ordem das coisas cotidianas que a artista propõe, e é por meio dessas pequenas rupturas que aparece então, em sua obra, a idéia da possibilidade de tornar concreto um “lugar que não tem lugar”. É para lá, provavelmente, que nos leva a “Corda” pendurada no teto da galeria.

Mas ainda que o conjunto de trabalhos aponte para o surgimento de uma espécie de micro-utopias, não seria correto, contudo, comparar essas micro-utopias às grandes utopias da modernidade. Seu caráter não é de redenção ou tampouco de proposição de verdades absolutas para se atingir uma redenção sonhada. Não há nesses trabalhos um projeto acabado, uma proposta específica. O que fazem, concretamente, é despertar ou alertar alguns sentidos para a idéia de que a capacidade de provocar rupturas em determinados sistemas é uma potencialidade de cada indivíduo e que só pode ser pensada e ativada por nós mesmos. Nesse sentido, são trabalhos que dizem respeito a experiências singulares, onde a própria noção de singularidade se torna importante. Se hoje não é mais possível se falar em grandes utopias num ambiente urbano completamente desordenado e desigual como o da cidade de São Paulo, talvez os pequenos gestos nos ajudem a recuperar um sentido de possibilidade de ação, de possibilidade de se pensar como poderia ser esse “outro lugar” que não é este lugar que habitamos hoje.

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Aérea
Luisa Duarte

Uma caixa repleta de breu – o pó que os dançarinos usam nos pés para não escorregarem no palco – recebe o público na porta de entrada da Galeria Vermelho, que abriga a individual “Aérea” de Edilaine Cunha. Ali, logo no início, já está dada a senha de que a nossa presença é bem-vinda, necessária, e irá contaminar todo o espaço expositivo. Em um comentário publicado no blog que funcionou como lugar de discussão para esta exposição, a artista afirma que a inspiração para este trabalho veio de uma obra de Joseph Beuys, “La rivoluzione siamo noi”, de 1971, título/lema que acompanhava um auto-retrato emblemático do artista e sintetizava o caráter emancipatório do indivíduo criador. Não me parece arriscado afirmar que não só "Breu", o trabalho, mas a mostra como um todo possuí vínculos com a idéia que está na gênese do lema proferido pelo artista alemão. Assim, parte da tarefa que a exposição de Edilaine Cunha coloca é a de pensar quais revoluções nos cabem e são da ordem do possível no tempo de agora, 2006.

Logo que começamos a fazer o percurso da exposição, um outro trabalho, "Suave deslocamento do ar", nos assedia – ou nós o assediamos? Trata-se de pequenas ventuinhas, sensíveis à presença humana, embutidas em lugares estratégicos, de passagem. No momento em que a presença humana é detectada, um dispositivo aciona o movimento do ventilador. O trabalho tem o intuito de nos fazer lembrar da nossa presença, é o nosso corpo que o coloca em movimento. E note-se que este acionamento é feito numa voltagem onde a simplicidade dá o tom; somos chamados atenção por um leve sopro de ar. São desta natureza os deslocamentos propostos em Aérea. Ou seja, uma natureza na qual cada um de nós possui a sua importância e os deslocamentos são sutis.

“Para quebrar o silêncio” é outra obra/proposição que solicita nossa participação. Temos uma serigrafia em uma sacola plástica branca pequena, como as de supermercado. Em cada uma está impresso o texto/proposta Para quebrar o silêncio e duas imagens nas quais são mostrados dois passos; no primeiro, uma figura humana inflando um saco plástico, e no segundo, o saco sendo estourado. Trata-se de uma proposta simplória: infle um saco, estoure com uma das mãos e provoque um barulho. Atentemos que, mais uma vez, o poder de realizar uma transformação, mínima que seja, está em nossas mãos: a artista propõe que entremos no jogo e lembra que para quebrar o silêncio, aqui visto como sinônimo de apatia, pode bastar um gesto simples.
No díptico de fotografias Levitar, vê-se retratada a cena de um quarto com a cama desfeita e a própria artista de pijama grudada no teto. Numa das fotos, Cunha tem o rosto voltado para o teto e na outra virado para baixo. Esta vontade inexeqüível de alçar vôo em um espaço fechado já fora manifestada em um outro trabalho, “Experiências transcendentais de fácil resolução”, de 2003, que se constituía num encarte, dentro de uma revista, no qual era proposta a seguinte experiência: aprenda a voar em sua cadeira de escritório. Havia então a ilustração da proposição em três passos, nos quais a própria artista se aventurava na tentativa de alçar vôo a partir de uma cadeira. Assim como lá, aqui também Edilaine Cunha apresenta uma situação permeada por limitações, ao mesmo tempo em que faz de um gesto artístico muito simples uma espécie de passaporte para a abertura de novos vôos, de ida para um outro lugar . Indicando que a transcendência, essa ida para um outro lugar, pode se dar através de pequenos deslocamentos, e nos dois casos, com uma dose substancial de humor diante das próprias limitações.

Uma outra porta de leitura para este trabalho, “Levitar”, diz respeito ao diálogo com a arquitetura, tanto a moderna quanto a mais ordinária dos dias atuais. Esta porta foi aberta por Kiki Mazzucchelli, que também assina um texto sobre a presente exposição. Se a arquitetura de Niemeyer é um emblema marcante de um tempo em que ainda sobrevivia uma crença no projeto moderno no Brasil, as micro-arquiteturas das grandes cidades de hoje (quartos de apartamentos, escritórios) que Edilaine Cunha toma como ponto de partida para alguns de seus trabalhos, não deixam de ser símbolos da falência deste mesmo projeto moderno. Dado que são locais onde uma classe média vive acuada, diante de um espaço público tão abandonado quanto ameaçador. E mais uma vez, a diferença está no olhar da artista, ao não enxergar aí um cenário sem saída, mas sim encontrar brechas para possíveis vôos dentro deste mesmo cenário, percebendo que ali, no local mais próximo, da vida diária, existem possibilidades insuspeitas de transmutações diante da realidade vigente.

Ainda no caminho destas falhas da utopia moderna, estaria o fracasso de um ideal de sociabilidade. Tal discussão é levantada pelos trabalhos “Separadores, 1, 2, 3”. Trata-se de três estruturas tridimensionais em vidro, metal e rodízios. Uma placa de vidro de 10 mm na vertical apoiada num suporte de metal possui a função de separar dois corpos. Em um deles os corpos ficam de pé, e o separador pode se mover, no outro os corpos ficam sentados, e no terceiro deitados. Este trabalho remete a uma escultura anterior da artista, “Guichê”, de 2003, que simulava o espaço de troca burocrática, mas no qual um vidro vedava qualquer possibilidade de comunicação. Nesse trabalho, Edilaine Cunha abria a nossa percepção para uma incomunicabilidade que existe, com ou sem abertura no vidro. A troca burocrática é marcada justamente por um grau de automatismo em que o que e como se fala pouco importa. A diferença de “Separadores” está no fato de tocar em uma dificuldade de comunicação no que seria um espaço privado, e não público. A artista revela como este estar perto - seja sentado, deitado, ou caminhando junto – não significa necessariamente que esteja havendo uma troca. Em “Separadores” temos a oferta de um lugar onde duas pessoas podem estar bem próximas, numa suposta situação de intimidade, mas impedidas de se relacionar. Mais uma vez o vidro obstrui a comunicação. A artista não deixa de revelar o lado patético desta dificuldade de relacionamento, ao colocar os espectadores lado a lado, se olhando, mas sem poderem se tocar ou falar. O gesto artístico consiste em tornar visível esta redoma intangível que cada habitante de uma grande cidade do século XXI – tempos de extremo individualismo e diminuição do espaço público - acaba levando consigo, seja nas relações pessoais no espaço privado, seja a cada vez que sai à rua. Ainda na esteira do vínculo com a falência de um projeto moderno, é possível pensar o quanto certas obras de Edilaine Cunha, incluindo aí “Separadores” e “Guichê”, apesar de soarem em uma tonalidade inteiramente contemporânea, possuem um rigor formal, uma assepsia, que remetem a forma moderna. E o toque de ironia estaria então em fazer uso de uma formalidade de fisionomia moderna para falar justamente de algo que não deu certo no projeto sustentado pelo ideário vinculado a esta formalidade.
A questão das falhas, das possibilidades de erros, é também o foco da série de cinco fotografias “Popstars_erros”, único trabalho desta exposição que não data de 2005, mas sim de 2003. Nesta série a artista se apropria de erros de transmissão de dados no computador no momento de capturar o que seriam retratos de cantoras de música pop. Devido à falha da tecnologia, o que vemos é somente um emaranhado de pixels que tornam os rostos das pop-stars (Madonna, Courtney Love, Alanis Morrisette, entre outras) irreconhecíveis. Aqui a técnica (prima-irmã de um ideário moderno vinculado à crença no progresso), e sua implícita promessa de felicidade, de melhoria da vida das pessoas, surge em seu momento de fracasso.

O trabalho que ocupa o maior espaço da mostra, “Preenchendo vazios”, é formado por dezenas de bolsas plásticas cheias de ar. Ao longo do período da exposição o espaço será ocupado por uma quantidade cada vez maior desses vazios embalados. São muitas as variáveis postas em jogo neste trabalho, primeiro ele contém uma dose incontornável de imprevisibilidade: como as pessoas irão se relacionar com ele é uma incógnita, se vão estourar os vazios, levar consigo, espalhar ainda mais pela galeria, etc. Para além desta vertente relacional, deve-se atentar para o que significa o ato de preencher vazios, num gesto através do qual ele torna-se protagonista. Dentro do campo da arte, a escultura nos ensinou o precioso valor desta matéria invisível, é da atenção dada a ela que surge o visível, ou seja, o espaço preenchido. Mas acredito que no caso do trabalho de Edilaine Cunha interesse, sobretudo, pensar no vazio como potência em estado latente à espera de ser ativada, pensando esta atitude num sentido lato, até mesmo com reverberações políticas – nos novos termos em que esta palavra se coloca em 2006.

Edilaine Cunha vem trabalhando de forma persistente com as idéias de vazio, falta e preenchimento de espaços, pela arte e por nós mesmos. É característico de muitas obras da artista lidar com elementos tradicionais da arte por assim dizer, e a partir daí derivar para questões amplas que tocam a vida em sociedade nos dias de hoje. Ao embalar o vazio na obra em questão, a artista busca mostrar que existem espaços que talvez não enxerguemos e que podem ainda ser ocupados, como se estivessem a nossa espera. Onde parece não haver saída, em um mundo brutal onde mecanismos de controle cada vez mais perversos inibem ou mesmo impedem o exercício de uma vitalidade no sentido amplo, podem sim haver brechas insuspeitas para o exercício de uma vida ativa, capacitando cada um para o exercício de emancipação que leve a transformações e atos de resistência. Este caminho de pensamento, entre outras coisas, parece querer nos dizer o seguinte: diante do vazio da cena política num sentido macro, do fim dos sonhos utópicos de transformação da realidade, um novo campo de atuação ganha lugar, no qual um âmbito mais intimista de proposições entra em cena. Aqui ganham força a dimensão do possível, o momento presente, a experiência cotidiana e a potência das pequenas narrativas. Tais aspectos, por sua vez, imprimem um caráter micro-político a este tipo de intervenção.

Assim como somos recebidos pelo “Breu” logo na entrada da galeria e contaminamos o espaço interno com a nossa presença, o mesmo ocorre quando saímos dela. Assim, não se torna difícil pensar que levamos conosco a senha ali dada, de que a nossa presença pode significar uma diferença, no que isso comporta de responsabilidades e possibilidades no mundo em que vivemos. E a medida desta atuação tem na obra de Edilaine Cunha um parâmetro, que parece indicar uma atuação não mais heróica, mas na qual ainda sim possamos alterar percepções e promover descolamentos, dissonâncias, notando que as pequenas coisas, hoje, parecem estar falando mais alto.

Rio de Janeiro, janeiro de 2006.

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CUBO BEGE
   
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